terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Mudança de Fase

Ontem eu estava sentindo muito calor. Já passava das dez horas da noite. Abri a geladeira procurando por água, mas não encontrei nenhuma bebida gelada. Sem pensar muito, enchi uma garrafinha de água e coloquei no congelador. Depois de fechar a porta pensei “Tenho que lembrar de tirar antes de ir dormir”. Continuei lendo, pesquisando, assistindo vídeos na internet. Fui dormir. Acordei e estava sentindo muito calor. Lembrei da garrafinha. Quando eu a retirei do congelador, achei bonita a forma do bloco de gelo, com a luz do Sol o atravessando. Fotografei a garrafa, mirando exatamente contra o Sol.

A água líquida é transparente, nós conseguimos ver através dela com facilidade. Quando a água está na fase sólida, lhe chamamos gelo. Gelo é translúcido. Isso significa que a luz, quando o atravessa, é obrigada a mudar de direção e, por isso, quando olhamos através dele, não vemos imagens perfeitas, mas um espectro distorcido do que está do outro lado. Ainda é a mesma substância, mas são fases diferentes, ainda é a mesma luz, mas percorrendo outros caminhos.
Como se fosse água, nossa vida flui e muda de fase dependendo da temperatura dos nossos ânimos. Às vezes, acreditamos que nos tornar como gelo será bom, mas a rigidez e a frieza da razão exacerbada não deixam passar a luz da realidade. Outras vezes, deixamos nosso coração guiar, esquentando demais, daí os sentimentos confundem tudo como se fosse névoa, nuvem, vapor...
Se olharmos um lago de águas puras, calmas e cristalinas, é possível que consigamos ver o fundo. Conseguiremos diferenciar os peixes, as plantas, as pedras, talvez até vejamos o nosso próprio reflexo com alguma nitidez. No rio, de água corrente e agitada, as formas mudam rápido e nem a velocidade da luz vence a fluidez da vida que segue. Olhando a água agitada não diferenciamos a planta do peixe, a pedra da terra, não vemos os detalhes das marcas que a jornada deixou no nosso reflexo.
Somos arrogantes na nossa ciência. Dizemos que a água, na fase “ambiente” é líquida. Tenho uma amiga que vai se mudar para uma terra onde a temperatura pode chegar a menos 10°C, nesse ambiente, a água é sempre sólida. No céu, acima de nossas cabeças, a água é gasosa e é também ambiente. Quem define qual ambiente é o padrão? Quem define o que é normal? A neve não é normal nos polos? As nuvens não são normais no céu?
O ambiente molda a água assim como molda a nós mesmos. Assumimos que a fluidez da água líquida é sua fase nas condições “padrão”. Devemos ser fluidos, devemos nos adequar aos recipientes, tomando a forma de nossas cadeiras no trabalho, nossas camas, nos espaços que nos são adequados.

Mas somos água! Não necessariamente líquida, nós somos a substância água! Vamos vagar ou parar, ceder ou resistir, mudar de fase como manda nosso temperamento. Temos que ocupar nossos espaços da forma como quisermos e, se quisermos, nos espalharmos deleitosos por aí à fora, voando como vapor, chovendo como chuva, caindo leves como neve. Somos de fases. Sempre novos, sempre em mudança. Somos água.

terça-feira, 1 de março de 2016

Janelas

Estamos nos acostumando a olhar somente pelas janelas virtuais: não observamos o mundo a nossa volta com a devida atenção porque, através da janela mágica de nossos computadores, sofremos da ilusão coletiva de que estamos olhando por todas as janelas de uma só vez.
Ontem à noite, olhei pela janela da sala e percebi, pela primeira vez, quão gigantesco é o prédio que se ergue, solitário, há duas quadras daqui. De onde a vista alcança, contei 27 andares. Cada qual com suas varandas, suas charmosas luzes acesas, seus moradores que provavelmente estão olhando os smartphones, lendo notícias em seus tablets, assistindo séries e reportagens pelas suas janelas HD. Cada apartamento, iluminado, à meia luz ou mesmo escurecido, tem pessoas, moradores com histórias individuais. Cada janela, uma história ignorada.
Acordei na madrugada. Olhei as horas no celular: cinco. Percebi uma escuridão além do habitual no quarto. As pequenas luzes dos aparelhos eletrônicos não estavam acesas. Faltava energia elétrica. De repente, um estouro. Um transformador explodiu em algum lugar da redondeza. Está se tornando habitual. Minutos depois, outro estouro. Em seguida, mais um. Voltei a dormir em meio aos sons dos canhões da modernidade.
Até agora a energia não voltou. São quase oito horas e acabo de ouvir um novo estouro. É um sentimento estranho, uma sensação diferente. Parece que, sem poder olhar por nossas janelas mágicas, todas as outras janelas deixam de existir. Um certo torpor, como se ainda não estivesse desperto de fato. Pego papel na gaveta e uma caneta preferida e começo a escrever.
Olho pela janela da sala e o cruzamento não parece tão caótico quanto imaginava com o semáforo desligado, um pouco descoordenados, tal qual dançarino sem ritmo, os carros continuam sua dança. Pais chegam para trazer as crianças a pré-escola em frente. Com suas pequenas mochilas e guarda-chuvas abertos, eles aguardam alguns minutos, mas logo vão embora: não podem acolher as crianças já que não há previsão da volta da energia. O prédio, tão atraente da noite anterior, já sem o glamour das luzes, permanece indiferente à chuva, ao vento ou às preocupações dos moradores.
O bairro repleto de casinhas antigas, cresceu muito nos últimos anos. Fincaram por toda parte torres enormes, em meio às muitas vilas habitadas pelos senhores e senhoras, imigrantes de uma época que já não existe. A rede elétrica não comporta o progresso. Vemos transformadores estourando de tempos em tempos. O trânsito é ruim porque há carros demais, os mercados estão sempre cheios porque há consumidores demais, as escolas não têm vagas porque há alunos demais. Amontoamos pessoas em prédios de 30 andares, como se casas na vertical pudessem suprir todas as necessidades das pessoas por espaço. A estrutura precisa ser verticalizada na mesma proporção das moradias.

Quando foi que isso aconteceu? Acho que estávamos muito ocupados para ver o mundo mudando da nossa própria janela e preferimos ficar olhando dessa “janela de ninguém”. A energia voltou. Melhor ligar logo o computador e passar à limpo esse texto: onde já se viu, hoje em dia, escrever com papel e caneta?

domingo, 29 de dezembro de 2013

Ovo de falcão

Sempre fui muito ligado a símbolos. A maior parte dos meus amigos, se questionado sobre qual o símbolo que me representa responderá facilmente que é o Olho de Hórus. Num primeiro momento, por admirar o significado da sabedoria e da visão aguçada, adotei o símbolo como meu, exaltando as virtudes que gostaria de ter. No entanto, com o passar dos anos, conheci uma gama enorme de significados atribuídos a ele, de tal modo que eu pude valorizá-lo cada dia mais. Hoje, eu sei que ele simboliza os valores com os quais eu compactuo, a fé que eu professo e a liberdade com a qual eu desejo viver.
Há anos, carrego esse símbolo comigo, todo o tempo, na forma de um medalhão, presente de queridos amigos. Não gosto de sair sem ele, não pelo apego material ou pela crença que alguns tem, de que é um símbolo de proteção, pois nem sequer acredito nessas supertições. Eu não gosto de sair sem ele porque carregá-lo no peito é como dar um testemunho, silencioso e íntimo, daquilo em que eu acredito e da forma como procuro viver. Há dois dias, contudo, fui obrigado a deixar meu Olho de Hórus pra trás e mais uma vez ele carregou consigo um novo simbolismo: ao representar minha própria essência, é como se ele tivesse recebido toda a ofensa que me atingiu.
Naquela noite saí de casa com o objetivo de me divertir, de dançar até doerem os pés dentro dos sapatos, de rir a valer. Saí de casa com um sorriso no rosto, aquele que dizem que é charmoso, mas que eu só acho que é de sincera felicidade. Na fila da danceteria, conversava sobre a vida, sobre como a vida tem sido indescritivelmente inacreditável na simplicidade de cada momento realmente apreciado em sua unicidade. De repente, senti uma pancada no rosto. Ouço um carro acelerando e pessoas gritando. Não entendi muito bem porque alguém ali na fila iria me jogar uma pedra de gelo. Foi muito rápido. Começou a doer e parecia que tinha me molhado muito. Olho em volta e, para minha surpresa meu amigo estava banhado de alguma coisa que, primeiro bateu em mim, depois espirrou nele. Ele não estava enxergando porque atingiu seus olhos e suas lentes de contato. Foi tudo muito rápido. Passei a mão na cabeça e percebi que, na verdade, não havia vindo da fila e não era uma pedra de gelo: eram ovos, lançados de um carro, de alguém que descia a avenida unicamente com esse propósito.
Todos sujos, melados, com um cheiro insuportável, o cabelo e as roupas grudando, fomos obrigados a ir embora. Nós nos limpamos um pouco com lenços de papel antes de entrar no carro, para não sujar tudo. Entramos e resolvemos voltar para minha casa, para que pudéssemos nos recompor. Quando entrei no banheiro e fechei a porta, vi meu rosto completamente imundo no espelho. Só o que queria naquele momento era me limpar e depois ficar em casa, magoado, ofendido, odiando a ignorância de quem havia feito aquilo. Sem pensar muito, tirei meu medalhão e fui tomar um banho. O cheiro não parecia querer sair da pele, do cabelo, da cabeça. Cheiro de ovo, cheiro de violência, cheiro de humilhação. Os cheiros se confundiam, mas no fim, ele era um só cheiro podre: cheiro de intolerância.
Hórus é o deus dos céus, seus olhos são o Sol e a Lua, então ele observa ação e coração, onde quer que esteja. Ele voa, na forma de um falcão, poderoso e imponente porque a sua liberdade não tem limites. Quando ele lutou com Seth seu olho esquerdo foi arrancado e a Lua parou de brilhar, mas os deuses substituíram sua vista por um amuleto e, depois dele vencer a batalha, eles conseguiram lhe restituir o olho. Hórus é o deus da guerra, essa guerra é a representação da batalha que travamos todos os dias contra aquilo que nos cega, contra aquilo que nos tira a liberdade. De olhos realmente abertos somos livres e poderosos, podemos conhecer nossa Verdadeira Vontade e nos realizarmos. Esse é o objetivo da vida, viver realizado.
Saí do banho com isso em mente. Limpo e com a dignidade e a Visão reconstituídos. Quando vi meu medalhão, ele estava emporcalhado, totalmente sujo. Eu levaria bastante tempo para limpar a corrente, tirar todos os resquícios, cascas, não podia fazer isso naquele momento, meu deus, Hórus, me conclamava a uma missão mais importante. A palavra de pecado é restrição e ficar em casa remoendo aquilo seria o mesmo que restringir a mim mesmo, seria aceitar que o ato infame daquela pessoa estava tomando a minha liberdade e o que é pior, restringindo o que possuo de mais sagrado: a minha Vontade. Voltamos para a danceteria. Naquela noite eu me diverti, dancei até doerem os pés dentro dos sapatos, ri a valer. Naquela noite eu fiz exatamente aquilo que eu queria fazer quando saí de casa da primeira vez: vivi.

Pena que nem todos tem a capacidade de Ver. Ver é ser livre. Viver a liberdade é a verdadeira felicidade.

Max

domingo, 22 de dezembro de 2013

Feitiçaria de verão

Trilhei muitos caminhos para aprender o que segredo do lado de lá do mar. Primeiro o mestre me mandou olhar o meu reflexo nas águas calmas da lagoa. Contemplei a mim mesmo, do nascer ao por do sol. Então a noite chegou, sem estrelas e sem luar, e eu já não via mais a mim mesmo. Perguntei ao mestre o que deveria fazer já que eu não reconhecia mais meu reflexo nas águas agitadas do lago. Fique quieto e vá embora, disse ele, vá caminhar.
Sozinho e em silêncio, caminhei por toda a terra. Cheguei à encruzilhada sem saber que rumo tomar. Voltei ao mestre e perguntei o que deveria fazer já que estava na encruzilhada, sem mapa para me orientar. Conhece a todos pelo caminho, disse ele, alguém há de te orientar.
Conheci e observei toda pessoa pelo caminho, escolhi, enfim, o rumo que deveria tomar. Novamente a noite chegou e eu não reconhecia o lugar em que estava. Voltei-me ao mestre e perguntei o que deveria fazer já que havia escurecido e eu não tinha certeza se estava onde deveria estar. Você agora é feiticeiro, disse ele, se tiver dúvida, a única solução é queimar.
Eu estava com medo do Fogo, mas estava determinado a prosseguir. Precisava refletir e descansar antes de continuar. Num lindíssimo dia de verão, cheguei à praia deserta e o barulho do mar foi o aconchego da alma cansada de tanto caminho. Com o coração tranquilo, sentia a areia sob meus pés e andava sem pressa, pelo tempo que me foi necessário. Então vi que, por mais que eu andasse na areia, as pegadas eram levadas pelas ondas quando a maré mudava e, do passado, restava apenas lembrança. Satisfeito, decidi que havia chegado a hora de queimar.

O mar está fervendo.

A fogueira foi quem esquentou a água do mar.
Eu acendi a fogueira pra fazer mandinga,
acendi a fogueira pra poder queimar.
Eu acendi o fogo nas águas do mar.
Eu dançava aquela dança insana,
aquela dança de roda,
aquela dança de rodar.
Eu rodava feito louco,
cantava em volta da fogueira,
rodava cantando,
cantava rodando,
rodava e cantava,
cantava e rodava,
queimando e queimando
nas águas do mar.

O mar está fervendo!

Depois de todo o Fogo, toda a dança, todo o feitiço de verão, não havia mais medo e o oceano que me separava daquele aprendizado estava seco. Atravessei a pé toda a distância e consegui chegar. Lá me esperava o Mestre. Você aprendeu, disse ele, aprendeu andando que você sempre teve asas para voar.


Max